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UM DRINK, DUAS COPAS E VÁRIAS HEROÍNAS: A HISTÓRIA DAS COPAS MARTINI & ROSSI - PARTE II

“O gol marcado sob o sol escaldante que iluminava o Estádio Azteca não só definiu a equipe campeã do mundo, como também foi a confirmação de uma hegemonia. Estava ali a melhor seleção do planeta”

Foto: Asger Sessingo/PA Images

Provavelmente a descrição acima talvez tenha te levado ao gol de Carlos Alberto na conquista do Tricampeonato da Seleção Brasileira na Copa de 1970. Saiba que está tudo bem se você pensou nisso. Apesar de você estar lendo um texto da Revista da Mulher no Futebol, pouquíssimas pessoas no mundo fazem ideia de que um ano depois do “Capita” estufar as redes, mulheres de várias partes do mundo também encantaram as arquibancadas mexicanas com um excelente futebol na segunda edição da Copa Martini & Rossi.


Depois de uma primeira edição confusa, mas de muito sucesso, a FIEFF mais uma vez aprontou das suas para realizar o torneio. A primeira ação de caráter no mínimo duvidoso, foi a tentativa falha de realizar uma eliminatória para definir quem participaria do torneio. A expectativa era de que 13 seleções entrassem na disputa por uma vaga no torneio, o que não aconteceu. Com isso, a entidade simplesmente decidiu considerar os vencedores de alguns amistosos disputados no início do ano de 1971 e considerá-los os “classificados para o mundial". Com isso, a Dinamarca, campeã da primeira edição, conquistou a sua vaga graças a vitória em um amistoso contra a Suécia e a França, mais uma vez representada pela equipe do Stade de Reims, que se classificou ao vencer a seleção holandesa em um amistoso disputado em abril daquele ano.


A Martini & Rossi, empolgada com o sucesso da seleção mexicana na primeira edição do torneio e claro, querendo aproveitar o embalo do sucesso que foi a Copa masculina disputada em 1970, decidiu fazer o torneio utilizando alguns dos estádios do torneio do ano anterior. O governo e a população mexicana abraçaram a ideia, sendo presente até nas chegadas das delegações no aeroporto, o que causou uma grande surpresa nas atletas na hora do desembarque. Diferentemente do ano anterior na Itália, desta vez as atletas davam autógrafos por onde passavam, contavam com escolta policial e principalmente as hospedagens eram dignas de cinco estrelas.


Outra prova de que se tratava de uma competição maior foi a cerimônia de abertura. 80 mil pessoas estavam presentes para ver as delegações desfilarem pelo campo ao som da banda militar e após ouvirem longos e cansativos discursos de políticos e dirigentes da FIEFF finalmente viram a bola rolar para a estreia da seleção da casa contra a Argentina. Os relatos da vitória da “La Tri” são semelhantes aos de alguns jogos da seleção italiana no ano anterior: arbitragem caseira (jogadoras argentinas juram que houve um gol muito mal anulado quando a partida estava 2 a 1) e muito esforço para que a equipe da casa fosse o mais longe possível na competição.


A PAIXÃO MUNDIAL


Toda festa na abertura não conseguiu esconder um problema sério na organização do torneio. Havia uma clara a intenção de explorar a “feminilidade” das atletas por parte das lideranças e dos patrocinadores. Jaime de Haro, presidente do Comitê responsável pela competição, disse ao jornal The New York Times meses antes da bola rolar, de que a feminilidade seria explorada de diversas formas – desde os uniformes até o acesso livre à salões de beleza para as atletas. As imagens e vídeos da época não mostram uniformes colados e relatos das atletas presentes no torneio reforçam de que, qualquer tentativa de exploração dessa forma, não aconteceu. Se havia algo de gosto questionável eram os clichês da época, como os curtos vestidos das dançarinas nos shows do intervalo, a mascote Xochitl – que usava um short desnecessariamente pequeno – e as traves dos gols, que contavam com listras rosas.

Flâmula do torneio com a Mascote Xochitl

VOLTANDO AO CAMPO E BOLA


Depois da partida de estreia, as donas da casa golearam a Inglaterra e garantiram a vaga na semifinal. A segunda vaga foi disputada entre a seleção argentina, que viajou com apenas 17 atletas para o México, e a jovem seleção inglesa – que contava com uma jogadora de apenas 13 anos, Leah Caleb. A “Albiceleste” atropelou – na bola e na força física – a jovem seleção inglesa. Os 4 x 1 foram pouco perto das contusões de duas jogadoras do English Team, que saíram do estádio engessadas depois de fortes entradas das adversárias.


O outro grupo, que contava com França, Dinamarca e Itália, foi disputado na cidade de Guadalajara. A Dinamarca estreou bem, fazendo 3 x 0 na seleção francesa. Na segunda partida as francesas fizeram jogo duro e venderam caro a derrota por 1 x 0. Com os resultados a terceira partida entre as duas seleções finalistas da primeira edição do torneio, foi apenas uma partida protocolar e o empate em 1 x 1 classificou dinamarquesas e italianas para a semifinal.


AS SEMIFINAIS


Antes da bola rolar para as semifinais, que seriam disputadas no Estádio Azteca, as atletas tiveram alguns dias para aproveitar o hotel, visitar pontos turísticos e descansarem. Porém, duas das seleções não esperavam passar pelos imprevistos que as aguardavam. A Dinamarca teve problemas com o motor do ônibus no meio do deserto e depois de muito tempo buscando ajuda foram salvas pelo ônibus que levava a seleção italiana ao mesmo destino. As duas delegações se apertaram no ônibus e depois de muito sofrimento chegaram ao seu destino. O caso da seleção Argentina foi ainda pior, pois em uma das saídas para treinar o ônibus que levava toda equipe se envolveu em um acidente com uma Kombi e oito atletas, entre elas a artilheira Elba Selva, que acabou ficando de fora da semifinal contra a Dinamarca graças aos ferimentos que sofreu.


Estes “perrengues” foram apenas alguns percalços das equipes envolvidas no torneio. Apesar da a organização custear hospedagem e alimentação, muitas viajaram com pouco ou nenhum dinheiro no bolso, várias delas foram obrigadas a usar chuteiras de tamanhos diferentes dos seus pés pois elas foram doadas. No caso da seleção argentina, nem treinador a equipe tinha em seu primeiro jogo. Apenas após a derrota para o México que Norberto Nozas, ex-jogador que seguia a carreira de treinador no país sede do torneio se ofereceu para treiná-las durante o restante da competição.


Mesmo com a boa vontade do treinador, encarar a Dinamarca naquela época já era complicado por si só. Com três atletas fora por contusão e algumas em campo jogando no sacrifício um função das sequelas do acidente ocorrido dias antes da partida, a única seleção sul-americana a participar do torneio foi presa fácil e acabou sendo goleada por 5 a 0. Na outra partida, que foi uma repetição da semifinal do ano anterior, as italianas – que foram beneficiadas pela arbitragem diversas vezes quando jogaram o torneio em seu país - sentiram na pele o que é jogar contra uma arbitragem que favorece as donas da casa. Mesmo com Carmela Varone abrindo o placar, um minuto depois a seleção mexicana teve um pênalti ao seu favor que foi convertido por Patrícia Hernandez. Ainda no primeiro tempo outro pênalti foi marcado e Hernandez virou a partida. De acordo com relatos de algumas jogadoras italianas, como Elisabetta Vignotto, o juiz durante o segundo tempo anulou dois gols claramente legais da Azzurra e o placar dos primeiros quarenta e cinco minutos se manteve, classificando as donas da casa para a final.


A ótima campanha da seleção mexicana e os ótimos números de público e renda fez com que as jogadoras, percebendo que o comitê organizador do torneio estaria ganhando um belo dinheiro, cobrassem uma compensação. Lideradas por Alicia Vargas – primeira mulher a fazer parte do Hall da fama do Futebol mexicano e que, graças as ótimas atuações no torneio, fosse apelidada de “Pelé Vargas” – elas exigiram o pagamento no valor de um milhão de Pesos, equivalente a 320 mil dólares na época, para ser dividido entre atletas e comissão técnica. Jaime de Haro, aquele da “feminilidade” disse que não pagaria valor algum e ameaçou chamar um outro elenco de jogadoras mexicanas para substitui-las. Cogitou-se até criar um selecionado com as melhores jogadoras das outras seleções para jogar a final, mas no fim, por respeito ao público, as atletas mexicanas decidiram jogar mesmo sem receber o valor exigido.


Do outro lado, as preocupações das dinamarquesas eram bem menores. Sabendo que a torcida mexicana poderia fazer algum alvoroço em frente ao hotel, como fez antes da semifinal contra a Itália, a delegação entrou em contato com a embaixada dinamarquesa e conseguiu que algumas famílias do país escandinavo que viviam no México hospedassem as atletas para que elas tivessem um apoio mais próximo da pequena torcida e claro, pudessem ter um boa noite de sono.


O MAIOR PÚBLICO DA HISTÓRIA DO FUTEBOL DE MULHERES


O dia 5 de setembro de 1971, por mais que o mundo contemporâneo tente ofuscar, é tranquilamente um dos maiores momentos da história do futebol de mulheres. As imagens da partida final da segunda edição da Copa Martini & Rossi entre México e Dinamarca, além de lindas pelo contexto histórico, mostram um Estádio Azteca lotado e celebrando um momento único. Cento e dez mil espectadores – este é o número que até hoje está no topo dos jogos com maior público da modalidade.


A pressão da torcida da seleção da casa, que cantou desde o primeiro minuto de bola rolando, nem de longe assustou as adversárias. Muito menos a jovem atacante Susanne “Susy” Augustesen, que com apenas quinze anos de idade abriu o placar aos 26 minutos do primeiro tempo. As poucas imagens e os relatos da época mostram uma seleção mexicana brigadora, esforçada e dedicada em campo, mas fica claro que a campeã da primeira edição era superior em diversos aspectos. Quando o cansaço bateu no segundo tempo, a jovem atacante Augustesen, que quase foi proibida de viajar para a competição pelos seus pais, marcou mais dois gols e decretou a segunda conquista da Dinamarca. A festa depois do “título mundial” foi acompanhada pela torcida mexicana, que aplaudiu as campeãs que novamente davam a volta olímpica segurando o troféu com a Deusa Grega da Vitória.

Foto: RZTA/ PA Images

No dia seguinte, as equipes participaram de uma cerimônia de encerramento, onde também aconteceu a entrega das medalhas. Depois daqueles dias em que foram a atração de milhares de pessoas, a grande maioria voltou para os seus países e seguiram suas vidas normais, tendo o futebol como uma prática amadora. As dinamarquesas pelo menos foram ovacionadas na chegada a Copenhagen e muitas delas seguiram para a liga italiana, quem provavelmente será tema de uma das nossas edições. A principal jogadora da final foi uma delas, que por lá foi artilheira do campeonato oito vezes e marcou mais de 600 gols nos vinte anos que ficou por lá.


Infelizmente, UEFA e FIFA não aproveitaram esses dois torneios para darem sequência a um projeto voltado para que a participação das mulheres na modalidade fosse legalizada, organizada e desenvolvida. Ainda assim, esses dois anos de competição deixaram um legado essencial para que, mesmo sem apoio das grandes entidades, o futebol entre mulheres ganhasse força em alguns países, principalmente na Europa.

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