Na final da Libertadores, entre o gol de empate do Boca Juniors e o golaço da vitória do Fluminense, eu precisei ponderar se realmente ia saber perder
A palavra “eternidade” parece pouco quando estamos medindo o quanto esperamos para vencer. É que no jogo e na vida, a gente perde muito – e a maioria das pessoas que conheço são impacientes, a turminha da ansiedade disparada, a que quer tudo, tudo mesmo, e pra ontem. É isso aí, bato no peito inclusive! Só que na vida, acho que a gente ainda perde até mais do que ganha, e daí a importância de desenvolver essa habilidade que não pode ser subestimada de jeito nenhum, porque pode nos levar longe nessa jornada humana de crescer de dentro pra fora: a de saber perder.
Uma eternidade se deu entre 2008 e 2023. Eu era criança quando o Fluminense perdeu pra LDU no Maracanã. Morava ainda em Minas Gerais, e até então, torcia pro Fluminense por influência do meu pai, que por ser um pai muito massa, não precisei considerar outra escolha. Mas foi na final da Libertadores de 2008 que entendi que era mesmo tricolor. Aquele jogo foi um horror: não porque foi ruim em si, nós goleamos, conseguimos um placar improvável, desafiamos o impossível. Mas precisamente por isso foi muito ruim, porque fizemos tudo e não pudemos tocar a taça. Não pudemos chamá-la de nossa. Como é que depois de fazer de tudo e mais um pouco, ainda era possível não vencer e se sentir um grande fracasso? Não entrava na minha cabeça.
A sofrência depois daqueles pênaltis era tanta que eu chorava de soluçar. E meu pai, que via o título ir embora, além de ser um torcedor arrasado, frustrado, desacreditado, tinha que exercer papel de pai e consolar sua filha pequena que não sabia perder. Ou que pelo menos, não gostava.
Tive que fazer contato com essa memória quando o Boca Juniors empatou o jogo. Já tinha um amargo na boca, um aperto no peito, e lágrimas nos olhos. Era difícil lembrar de respirar. O medo de perder estava batendo na porta. O terror de repetir a história da derrota… Logo ali. Nessas horas a gente fica pensando, talvez por desespero e porque a cabeça gira, que a gente merecia uma vitória, pra variar. No jogo e na vida. Pra tirar o ranço.
Porque se tem uma coisa que a gente que não sabe lidar muito bem com a ideia de perder faz, é acreditar que existe uma sombra, um ranço de derrota que há de se repetir. E que perder uma vez muito duramente significa ter a possibilidade à espreita de perder sempre, porque ser fracassado parece um destino mesmo que teremos que cumprir pra que outros vençam.
Essa narrativa é tão forte na sociedade — é preciso lembrar que as coisas que existem na nossa cabeça têm ressonância na realidade — que o post da vitória do técnico Fernando Diniz é exatamente sobre isso, não por acaso: “Trabalho muito e o que faço. A gente fica nesse lenga-lenga de rotular pessoas como fracassadas, esse conceito… É quase o mesmo conceito de quem tem dinheiro é bem sucedido, e quem não tem não vale nada”.
É exatamente essa mentira que a gente urgentemente tem que parar de se contar. Porque se ela for contagiosa e se alojar no cérebro, nós mesmos podemos eliminar as nossas chances de ter resultados diferentes para as coisas que a gente tenta, e acreditar que vai durar uma eternidade. E isso não dá. Abrir mão da vontade e da fé de que podemos ser melhores é praticamente uma sentença que, sinceramente, não dá em coisa boa. E nos prende numa armadilha muito, mas muito distante do nosso sonho.
Pensar na derrota do Fluminense era a última coisa que queria fazer, mas que precisei. A ansiedade cresceu tanto, que acelerou meu coração no ponto das batidas torarem no meu ouvido. Eu já não ouvia mais nada, só o embate da minha cabeça: acreditaria no ranço do fracasso, na ideia absurda que estamos destinados a perder, ou tentaria lidar com qualquer um dos resultados com alguma sabedoria? Algum aprendizado?
Aliás, é muito tarde pra aprender a perder? — eu pensava.
E então, pensei no meu pai. Pensei que, de todas as datas, a final da Libertadores caiu justo no dia do aniversário dele. Pensei nesse cara, que precisou perder muito pra poder então ganhar. E que, não se engane: segue perdendo, ganhando, com frequência e numa resiliência pra perder que me assombra. E que me inspira. Segundo ele, eu sou a pessoa mais forte que ele conhece. Eu só não sei se ele se olha muitas vezes no espelho pra dizer isso.
Mas sinceramente? Naquele dia, eu não queria testemunhar a nossa força não. Nem testar o limite de nossos corações intensos. Eu queria mesmo ganhar, porque essa vitória vinha com um querer absurdo, além de muitas outras nuances que todo torcedor/a de futebol e batalhador/a diante da vida conseguem compreender e sentir.
E então, John Kennedy marcou. Choro com a boca mais aberta que minha fisiologia aguenta, grito meu pai a plenos pulmões, que já tava passando mal, com a mão no peito, e o abraço. Ele segura o rosto nas mãos, eu choro mais desesperadamente. Obrigamos nosso coração a voltar. Minha tia, preocupada, massageia o peito do meu pai, que tá com a cara horrível. E então ela olha pra mim, e declara que eu estou roxa: me segura e me pede pra respirar, como se eu tivesse esquecido. Mal dá pra acompanhar o resto, o falatório, a gritarias, as emoções que inundam o peito, e véi, quanto um coração aguenta? Pergunto sinceramente.
A única eternidade possível é essa tal Glória Eterna de que tanto falam em relação à Libertadores, que é a durabilidade de um título para a história de uma instituição. Ou a que algumas religiões acreditam em relação à alma e o amor, dependendo da sua fé. Mas o mais importante é que não há duração infinita de qualquer sentimento, ou qualquer situação que pareça recorrente em nossas vidas. Não somos destinados à derrota, ao fracasso, à dor. Eu espero que você já tenha entendido isso, mas se não, por favor, tente se lembrar todos os dias. Eu assim o farei, por amor a mim mesma, minha história, meus ancestrais, e porque acho que estou finalmente aprendendo a perder.
Mais tarde, depois do jogo, eu e meu amigo João Victor fomos jogar sinuca, algo que sempre fizemos, mas que fazia meses que não fazíamos. Começamos equilibrados, até que ele disparou na minha frente: ganhou 6 partidas e eu havia ganho apenas 2. Enquanto perdia as partidas seguidamente, fui analisando meu jogo. Minha mira sempre foi boa, mas agora precisava melhorar, porque às vezes eu batia muito mais na cara da bola do que devia e às vezes eu tirava demais. E também, eu não estava prestando atenção na posição que a bola ia parar depois de cada jogada, o que deixou repetidas vezes caminhos livres pra ele emplacar grandes jogadas que encaçapavam as bolas — joga muito, meu amigo.
Derrota atrás de derrota, minuto atrás de minuto, segundo atrás de segundo, eu esvaziei a cabeça e só observava o jogo, me fazia presente ali, até o tempo não ser mais sentido como um peso, mas uma oportunidade. Logo, dois pensamentos se materializavam em ação. Um é que eu deveria ficar mais tempo mirando e calibrando a força da tacada, e outro que eu precisava me perguntar toda vez um “tá, mas onde essa bola vai parar?”.
Com isso, fui jogando, e as derrotas não pesavam tanto. Fui jogando, e errei bastante, até que comece acertar. O João ainda é um ótimo amigo, uma ótima pessoa, que vibrava em cada acerto, como eu também vibrava nos dele, e elogiávamos a as tentativas que levavam ao erro — porque tentar com intenção é tão importante quanto acertar, e também errar. Cada ato e resultado tem algo a ensinar. Fomos jogando sem ver ou sentir o tempo passar, até a hora de dar sono, a gente bocejar e cansar de verdade.
Antes de ir, olhamos o placar. Ele deixou de ter a importância de um objetivo e passou a ser apenas um registro, o registro da vida acontecendo e a gente se movendo com intenção em relação a ela, focando no momento presente e aproveitando cada segundo como uma oportunidade. Acho importante gerar e/ou alimentar nossas crenças a partir da nossa experiência, e não das narrativas questionáveis presentes na sociedade que se enraízam na nossa cabeça, porque essas sim podem mesmo nos destruir.
Mas existem outras formas de lidar com elas — e todas elas estão dentro da gente. Eu espero que você encontre a sua. Nessa jornada, cada momento importa, não do tipo ansioso e corrido, mas talvez seja importante pensar que o tempo pode ser, na verdade, um lugar onde vamos encontrar oportunidade. No presente, no aqui, no agora.
Saudações Tricolores,
Ana Valente
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